sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Memórias amargas

Lendo hoje o blog da Lola, num guest post onde uma leitora conta a terrível tentativa de abuso sexual que sofreu do pai, uma ira e também uma intensa vontade de desabafar tomou conta de mim. Toda mulher tem uma história parecida para contar. Pode não ser tão extrema assim, tão violenta, mas toda mulher já foi seguida, assediada num ônibus lotado ou mesmo foi vítima de mão-boba em festas. E isso desde a infância, passando pela adolescência até os dias de hoje.

E aí quando a gente para pra pensar as lembranças vem à tona. E no meu caso... ódio. Sim, é péssimo dizer isso, dá até um pouco de vergonha, porque se trata realmente de um sentimento péssimo. Mas não consigo deixar de sentí-lo, juntamente com mágoa e revolta. Ódio por ter sofrido tentativa de abuso aos 13 anos por um primo adulto que já tinha um filho, e muito mais por a família toda saber e ainda assim permitir o convívio normal do canalha com todos. Por meu pai mesmo tendo dado um escândalo (depois de colocar a culpa em mim pelo ocorrido, tendo se desculpado depois), ainda falar com ele, como se nada houvesse acontecido. Ódio por até hoje sentir uma imensa vontade de enfiar um belo murro bem no meio da cara dele, gritar para todos os conhecidos na rua que se trata de um marginal, que protejam suas crianças e ter o prazer de expulsá-lo de algum lugar. Ódio por não poder fazer nada disso, pois sei que não teria o apoio da família e ainda levaria fama de quem procura confusão, por lembrar uma coisa que aconteceu há 10 anos atrás.

Também lembro de um irmão desse meu primo (pois é, bela ninhada) ter deixado a ex-esposa de olho roxo por mais de duas semanas e minha família paterna e machista ter se reunido em volta da mesa dando razão a ele. E lembro de ter feito um escândalo imenso e ter levado bronca por isso. Mas eu, já feminista que era, não pude me calar. E gritei ao meu pai que era uma vergonha que o pai de três filhas desse razão a um marginal que batesse na esposa. E que se um dia eu passasse por esse problema sabia que não poderia contar com a ajuda dele.

E porque não falar do meu próprio pai, que bateu várias vezes na minha mãe e até a proibia de tirar a sobrancelha, sair de casa, pintar os cabelos pois isso era coisa de "puta"? E para nós posava de pai herói, muito digno e esperando que minha mãe colocasse o prato dele (como até hoje faz com a atual companheira, praticamente uma escrava do lar). Talvez eu não sinta tanta raiva porque sei que um dia minha mãe revidou e deu-lhe também uma bela surra, uma cena que hoje eu penso que adoraria ter visto. E hoje olho para o meu pai com uma mistura de amor e nojo, por saber que homens como ele deveriam estar na cadeia por baterem nas esposas. Mas como é difícil e doloroso desejar justiça para uma pessoa que se ama. Mas ainda assim meu sentimento feminista não afasta essa idéia, mesmo tendo se passado tantos anos. Porque uma coisa que os homens que violentam suas famílias não pensam é que a memória das crianças não passa. É algo que elas carregarão sempre, mesmo que só entendam o que aconteceu décadas depois. Não importa o que meu pai tenha feito de bom para mim, essa mancha nunca será apagada. Como mulher eu não posso permitir que ela se apague jamais.

E são tantos outros os personagens asquerosos com os quais compartilho o sangue. Um avô praticamente assassino desses que empunham a Bíblia, tios que ameaçam as esposas e irmãs (entre elas minha mãe), e por aí vai. Mas se há mais de duas décadas as mulheres da minha família resistiram, sei que as próximas gerações resistirão ainda mais. Porque se eu tenho vergonha de ter o sangue de alguns crápulas, ao mesmo tempo me orgulho de carregar o sangue de mulheres guerreiras que lutaram como puderam contra seus agressores. Muitas até conseguiram se livrar deles, afastá-los da própria vida. E sei que as crias femininas dessas gerações pretendem construir convivências mais igualitárias e educar os filhos de uma forma para que tais violências não se repitam de novo. E se um dia eu passar por algo do tipo, espero conseguir vencer o medo e correr atrás de justiça. E também espero nunca parir um canalha.

Nenhum comentário: